A despedida tem o som de uma gargalhada

Hoje ela acordou, como todos os 22630 dias desde que se lembra. Ligou para os filhos, para os netos. Perguntou como todos estavam. “Estamos bem, vó. Não se preocupe”.

Preparou o café da manhã e tomou sozinha.  Olhou para aquela mesa enorme e achou um exagero tanta fartura para uma pessoa só. Ali na solidão, o vazio fazia eco.

Decidiu ir ao salão de beleza. Pintou o cabelo, fez as unhas. Deu risada e fez todos rirem com a sua forma peculiar de transformar as tragédias cotidianas em pequenos shows de stand up.

Começa a sentir um mal estar e decidi passar em uma unidade de saúde. Tudo ok, o médico diz.

Decidiu caminhar. Tentando respirar um pouco de ar puro, se é que alguém consegue respirar com uma maldita máscara de pano cobrindo nariz e boca.

Passou na frente da casa de uma vizinha:

— Ei, Dona Maria, tem abacate aí?

— Tem sim, vizinha.

— Volto aí, outro dia, mas só por interesse no abacate, não é para te ver, não.

As duas caem na gargalhada.  A gargalhada dela sempre foi a sua marca registrada, era tão alta que dava para ouvir de longe.

Ela chega em casa, feliz por finalmente poder arrancar a mascara do rosto. Deixa os sapatos na porta da frente, conversa com os cachorros e entra.

Tira uma carne para descongelar. Toma banho. Liga para a cunhada e as duas conversam por um bom tempo.

“Até mais”.

Os telefones são desligados.

Volta para a cozinha para preparar o jantar, quando abruptamente sente uma forte dor no peito. Pega a chave do carro e corre para a porta da saída, mas antes de conseguir abrir a porta, cai no chão e ali fica até o dia seguinte.

Vozes familiares gritam por seu nome.

Silêncio.

Mãos batem vigorosamente nas portas e janelas.

Silêncio.

Alguém chega com uma cópia da chave da casa. Gira e entra.

O corpo, com unhas e cabelos tingidos repousa no chão gelado da cozinha.

A carne dentro da pia descongelou. O jantar sequer começou a ser preparado.

O abacate continuou esperando para que alguém fosse buscá-lo.

As promessas de visitas pós-pandemia não poderão ser cumpridas.

Um poeta disse que as pessoas não morrem, ficam encantadas.

Em algum lugar do céu os anjos podem ouvir suas gargalhadas.

Até breve, tia Jacira.